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31 dezembro 2021

Porque só devia haver um Matrix

Nesta última entrada na Matrix, alguém diz que "The Matrix is brain porn" (sic). Pois é, concordo, pena que, tendo inteiramente consciência disso, as manas Wachovski não nos tenham dado brain porn em 3 dos 4 filmes, mas se tenham entregue a devaneios com orçamento hollywoodesco. 

Atenção, eu até gosto dos devaneios das manas, mas eu tenho um gosto esquisito, talvez exceptuando o Speed Racer, mas por razões que se prendem com a falha completa das adaptações de anime ou manga a live-action pelos americanos. Mas os devaneios das manas são basicamente filmes de autor com orçamentos nível Disney, que ganhavam mais com um orçamento espartano e um produtor à maneira, que as faria concentrar-se naquelas duas palavrinhas-chave, que lhes deram o seu único e verdadeiro êxito: brain porn.

Para além das inovações tecnológicas (até hoje alguém vive com o arrependimento mortal de não ter registado a patente do bullet-time), da estilização visual e sonora completamente inovadora, o The Matrix tem uma base filosófica e de ficção científica pura e dura, que se vê em muito poucos filmes, sobretudo de género, mas também independentes. Ainda se podem ler no site original, através da Wayback Machine, os textos que foram escritos à volta das várias teorias que são expostas no The Matrix, por alturas da estreia das sequelas, e por pensadores modernos. Vão lá lê-los, se gostam de ficção científica e de brain porn. Vale a pena! Já agora que lá estão, naveguem um bocadinho no site, que é uma obra prima da infância da internet. Mesmo quem não faz questão do brain porn, ou nem sabe o que isso é, é exposto de forma muito inteligente a questões filosóficas que, acredito, passam pela cabeça de qualquer pessoa, mais cedo ou mais tarde nas suas vidas. São questões básicas, sem resposta, provavelmente nunca terão resposta. É aí que entra a ficção científica e a criatividade de quem a concebe (não importa o formato), está na concretização ou alguma hipotética resolução para essas questões que nos assolam em maior ou menor grau. O The Matrix também é um sinal do tempo em que foi criado, e aí é, como toda a ficção científica, datado. Quando digo "datado", não é envelhecido. Sempre achei, principalmente desde que comecei a ler ficção científica na adolescência, que a f-c espelha a realidade em que foi escrita, e é um exercício que gosto de fazer sempre que leio um livro novo, tentar identificar a sua época. Em geral acerto. Acerto não porque seja especialmente perspicaz, mas porque a ficção científica, o eterno menosprezado género literário, é o que sempre melhor nos mostrou a época em que foi criado e tem quase sempre por base conceitos filosóficos e humanistas. Digamos que é filosofia em formato pulp. E também é uma das grandes razões porque adoro a ficção científica em todos os seus formatos.

Então afinal porque não fazem falta os outros filmes? Primeiro porque, apesar do final em aberto, o The Matrix encerra ali todas as questões levantadas: A Alice no País das Maravilhas, o Brain in a Vat, as realidades manipuladas, a formatação das massas, o mito do escolhido, o messias, etc., etc., etc. Não eram necessárias mais explicações. Mais explicações são tomar o espectador por burro, é mansplaining, é bater no ceguinho. Mais, toda a elegância "estilosa" do primeiro, mesmo na "realidade", foi gradualmente sendo substituída pelos devaneios de mud wrestling e afins das manas. Basicamente elas complicaram o que já estava muito bem exposto, acrescentaram informação redundante. Deviam, como o George Lucas e o Spielberg, ter lido o Hero's Journey,  do "amigo" Joe Campbell e K.I.S.S., Keep It Simple, Stupid. Mas esses dois também não aprenderam bem a lição, ou já se esqueceram.

Se o Reloaded e o Revolutions não faziam falta, o Resurrections menos ainda, mas por razões um bocadinho diferentes. A redundância está nos três, mas no Resurrections o grande problema é outro: a história é muito fraca, com mais buracos que um queijo suíço e parece que quiseram fazer do Matrix um filme da Marvel, com opções estilísticas muito questionáveis. Infelizmente Lana Wachovski entrou na moda dos filmes de acção com uma narrativa quase inexistente, personagens com pouca ou nenhuma densidade e cenas de acção atrás de cenas de acção, reforçadas por aqueles efeitos sonoros mega irritantes dos graves com doppler, que compõem a banda sonora inteira de uma porcaria chamada Aquaman. Pior, estas cenas de acção à Marvel, são daquelas em que está TODA a  gente envolvida vestida da mesma cor, são pelo menos 3 ou 4 envolvidos, na maioria das vezes mais, e não se percebe patavina do que está a acontecer. Terem essas cenas ou uma descrição escrita das mesmas no ecrã, seria para mim a mesma coisa. Talvez a versão em texto até fosse melhor, pois ao menos assim deveria perceber melhor o que está a acontecer (pontos para os artistas de storyboard que, de alguma forma, terão conseguido interpretar aquela salgalhada em imagens).

Depois há a questão da estética visual. Na cena do átrio em The Matrix (sim, eu sei, baseada em Ghost in the Shell - continuo a preferir a cópia ao original), entre câmaras lentas e efeitos acrobáticos, percebe-se sempre o que se está a passar. Há um ritmo musical no modo como essa e as outras cenas de acção foram coreografadas, entre actores e câmaras, que é maravilhoso de ver e rever. As dos outros filmes foram-se tornando cada vez mais confusas. Os figurinos e cenários, com a predominância dos pretos e verdes, algum branco para os Agents (o Neo e os amigos nunca usam branco - nos filmes seguintes esse código de cores não é respeitado), dá-nos simultaneamente a sensação de insólito e a certeza que não estamos na realidade. Mesmo a "realidade", em cinzento e azul, é codificada cromaticamente, com Neo e Trinity a vestirem praticamente a mesma coisa, as mesmas camisolas cinzento mesclado com malhas puxadas, os mesmos jeans cinzentos gastos. Os outros, com variantes noutros materiais "orgânicos" e com a mesma paleta de cores. Esses códigos de cores, mais ou menos assumidos, são fundamentais sobretudo para narrativas distópicas, reforçando emocionalmente a suspensão da descrença, oferecendo ao espectador uma coerência visual que nos deixa confortáveis no universo em questão. Tornar uma narrativa que não é naturalista e realista, visualmente realista, não a torna mais "real" para o espectador e até faz com que se perca essa suspensão da descrença, pois começamos a avaliá-la com os nossos valores da realidade, que quase nunca correspondem realmente aos valores do universo no ecrã e acabam por distrair-nos. Mesmo em filmes mais realistas, há um controlo visual cuidado, que só é bem feito quando não se dá por ele enquanto se está  a ver o filme. No início de The Matrix, não percebemos logo que a paleta de cores é limitada, pois pessoas vestidas de preto e luz esverdeada, é bastante credível na nossa realidade, a luz fluorescente fotografa naquele tom, se não usarmos um filtro corrector. Portanto, essa paleta é familiar. Só damos realmente pela limitação, quando nos é dado o termo de comparação, primeiro com o tom âmbar das cápsulas das Machines e depois com a "realidade" cinzenta e azul.

Porque, não achando eu que as 3 sequelas fazem falta, fui vê-las na mesma ao cinema? Os Reloaded e Revolutions foi na esperança de ainda haver um coelhinho branco para seguir, este Resurrections foi por desporto, por querer ver novamente o Neo e amigos (e o eye candy do Keanu Reeves) no grande ecrã e porque a pandemia deu-me mais vontade ainda de ir ao cinema, apesar de o orçamento nem sempre o permitir. Ah, mas o Resurrections tem uma coisa de que gostei muito, foi ter como base não a Alice no País das Maravilhas, mas a Alice do Outro Lado do Espelho. Não fosse ter tido que enfiar voluntariamente uma zaragatoa no meu próprio nariz, teria valido a pena só por isso. Mas o filme não é responsável por a cultura ser a culpada de todos os focos da pandemia. NOT!

O The Matrix, como franchising, ou fandom, ou o que lhe quiserem chamar, está tão velho e partido, como infelizmente também estão os meus óculos da Trinity, uma das minhas primeiras compras na internet. Ah sim, os óculos deste filme são normalérrimos... O DVD do The Matrix foi o primeiro DVD que comprei, e nunca tive grande vontade de comprar os outros dois filmes ou a box que saiu mais tarde com os três. Este não quero mesmo comprar. Para além disso, o Matrix como franchising, será sempre de segunda, a não ser que a Disney lhe meta as patas em cima. Isso significa, que daqui a um ano, ano e meio, temos os 4 filmes a passar em maratona num qualquer canal de cabo, como já temos volta e meia os três anteriores.

The Matrix

The Matrix Resurrections 

14 dezembro 2021

Vilão que é Vilão, tem Contas Offshore na Ilha da Culatra

Quando assisti ao painel do Pôr do Sol, na ComicCon Portugal este fim de semana, é que percebi que me esqueci de terminar e publicar este post sobre a novela, escrito originalmente em Setembro. 

***

No início, ignorei, já perdi a paciência para novelas portuguesas há imenso tempo. Depois vieram os memes, "mmm... o que é isto?" E depois os posts dos amigos, em cujo gosto confio. Mesmo assim tive de confirmar. Rendi-me ao primeiro episódio! 

Pôr do Sol, O Amor Vem de Noite (sim, tem que ter a tagline!) é a lufada de ar fresco que a televisão portuguesa precisava. Há muito!

Inspirada em antigas sátiras novelescas, como O Diário de Marilú (in O Tal Canal) ou Moita Carrasco, Pôr do Sol é uma "telenovela" a gozar com as telenovelas, um desfilar de todos e mais algum clichés que se podem ver em novelas, desde DallasVale Tudo. O vilão com o copo de whisky na mão, as gémeas separadas à nascença, o bairro popular, cheio de aldrabões e pequenos criminosos, ginginha, pastéis de bacalhau, casas de fados, incesto, raptos, crime, corrupção, assassinato, várias estadias no hospital, um padre muito pouco celibatário, nomeiem o cliché, ele está em Pôr do Sol! Isto tudo aliado aos diálogos mais disparatados, ditos por um elenco impecável. Tenho de destacar Gabriela Barros, que interpreta as gémeas, que faz um trabalho genial! Como alguém disse numa rede social, é um trabalho impressionante, conseguir dizer aqueles dialogos daquela forma tão séria, sem se esbardalharem a rir! Gostava de ter assistido a um dia de gravação, hehe!

Desde os anos 80 que nunca mais se fez nada do estilo e é uma pena. Nicolau Breyner, uma das grandes inspirações dos autores, Manuel Pureza, Henrique Dias e Rui Melo (que também interpreta o vilão, Simão), foi um dos criadores do género, chamemos-lhe, o nonsense à portuguesa. Todas as séries acima a mencionadas, mais Duarte e Cª., tiveram bastante sucesso nos anos 80, mesmo que com meios de produção reduzidos e muito pouco polimento técnico. Eram os meios que existiam e, tipicamente, também foram produzidas com um orçamento muito reduzido, pois não foram levadas a sério. Eram verdadeiras Séries B, feitas com os restos de produções "mais nobres", com os técnicos a contrato pela RTP. Com o sucesso que tiveram, e teriam muito mais hoje, com uma boa campanha nas redes sociais, foi uma pena nunca terem feito "escola" e não terem continuado a ser produzidas coisas dentro do género.

Há uma grande resistência de quem decide, determina, programa as nossas TVs, a sátiras mordazes, que não se levem demasiado a sério. Mesmo Pôr do Sol é curtinha, com apenas 16 episódios, que comprova essa resistência. Espero que o claro sucesso mostre, pelo menos à RTP, que vale a pena apostar em conteúdos nonsense à portuguesa. 

Entretanto a segunda temporada já foi confirmada, vamos continuar a acompanhar a vida dos Bourbon de Linhaça, do Testículo, etc. e a banda Jesus Quisto já é sensação fora do contexto da novela. Tanto, que o amigo que me acompanhou ao painel e ainda não tinha visto a novela, não sabia da relação entre ambas.

O painel na ComicCon Portugal começou com os Jesus Quisto a tocar, Diogo Amaral, vestido de Joker e Madalena Almeida, vestida de Harley Quinn, em honra da ComicCon. Seguiu-se uma entrevista, entre a apresentadora, os autores e actores de Pôr do Sol e o público, onde se falou das inspirações, de detalhes técnicos (os copos para partir custam €35 cada!) e de piadas de bastidores (a maldição de Manuel Cavaco). Foi bem conduzida, de forma leve e divertida, estimulando a participação do público. 

Pôr do Sol (RTP Play)

09 dezembro 2021

Para Sempre... Interminável

 


Uma destas manhãs, enquanto tomava o pequeno almoço, começou a dar a Neverending Story (História Interminável), e pela primeira vez reparei num pormenor na equipa técnica.

Mas primeiro vou falar da minha relação muito pessoal com este filme e, sobretudo, este livro. Quando a adaptação para cinema da Unendlische Geschichte foi anunciada, em 1983, eu vivia na Alemanha, concretamente na RDA. Uma amiga tinha recebido de presente o livro e, desdenhando um bocado uma produção cinematográfica da RFA, com um pezinho em Hollywood, disse-me que o livro era excelente e que eu devia ler. Apesar de falar alemão e andar numa escola alemã, eu nunca tinha lido mais que revistas, artigos, banda desenhada ou instruções para fazer coisas. Enchi-me de coragem, pois o livro (naquela edição) é um tijolinho, e aceitei o desafio. É, até hoje, um dos meus livros preferidos e, apesar de ser para um público juvenil, é um livro que não tem idade e deveria constar muito mais nas listas de literatura fantástica. Este e os outros livros de Michael Ende, que teve o azar de morrer muito novo. Mas Die Unendlische Geschichte tem um problema grave, é um livro que, pelos seus subterfúgios gráficos e literários, perde com a tradução. Em inglês (que nunca li) é capaz de se safar, um bocado como do francês para português, mas em português esses subterfúgios perdem-se quase todos (um deles são os inícios de capítulo, com a primeira letra em iluminura, onde em português pode ficar forçado com facilidade) por causa das grandes diferenças entre ambas as línguas. Para além disso, Ende é um escritor brilhante, com um estilo maravilhosamente surreal.

O filme não passou nos cinemas da minha cidade na RDA, tal como o livro não tinha sido publicado por lá - o da minha amiga tinha sido oferecido, uma edição da RFA - não enquanto eu lá vivi. Por isso já só vi o filme, depois do meu regresso a Portugal, não me lembro quando, mas acho que não foi logo em 1984. Neverending Story é um daqueles casos de uma adaptação problemática. O que aparentemente parecia mais complicado, a recriação de Phantásien e dos seus seres exóticos, foi extremamente bem resolvido, com efeitos práticos inéditos num filme alemão, e uma réplica muito fiel às descrições do livro. No entanto, a história foi hollywoodizada, e focou-se menos na narrativa de amadurecimento que em pormenores secundários, sem importância maior, que foram distorcidos para servir o 'lobby' moralista de Hollywood.

Portanto, o que temos de bom em The Neverending Story? Uma excelente escolha de elenco, segundo as descrições do livro, excepto, talvez, o Atreju com pele verde, um design de produção impecável, muito fiel ao livro, e efeitos especiais de primeira! É lamentável a narrativa não estar à altura. Por isso, apesar de no geral ser um filme bem feitinho, espalhou-se ao comprido, ao tentar hollywoodizar o que é caracteristicamente não-Hollywood.

Tanto relambório por causa de um pormenor?  É um pormenor importante, importantíssimo! A razão é porque os efeitos especiais foram supervisionados por nada mais que Brian Johnson. E com uma mãozinha de Carlo Rambaldi. Mas afinal quem é Brian Johnson? Nada mais que o tipo que fez os efeitos especiais, nomeadamente os Águias de Space: 1999, voar! Johnson trabalhou durante vários anos para Gerry Anderson, foi ele e a sua equipa que fizeram os Thunderbirds voar, o Stingray mergulhar e basicamente ajudou a criar a Supermarionation. Quando Gerry Anderson resolveu aventurar-se em produções live-action, naturalmente a equipa de efeitos práticos, criativa e eficiente, manteve-se. Pouco tempo depois, Johnson e os outros técnicos, que filmavam o Space: 1999 nos estúdios Pinewood, perto de Londres, foram contratados para trabalhar no que viria a ser um gigante da ficção científica: Star Wars, também filmado em Pinewood. 

Portanto, foi uma surpresa agradável ver que os intercâmbios de técnicos de cinema europeus, deram frutos tão bons e explica porque Neverending Story não tem falhas a nível de efeitos práticos. Para além de o filme ser realizado por, o então desconhecido, Wolfgang Petersen, outro nome que figura na equipa técnica é David Fincher, como assistente de fotografia mate, e a Industrial Light & Magic esteve envolvida nos efeitos visuais do filme.

Eis uma razão para rever este filme e observar atentamente os seus efeitos especiais.

The Neverending Story 

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