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22 agosto 2021

Bem Bom


Continuo em Portugal dos anos 80, mas uns aninhos para trás. Tarde e a más horas, finalmente consigo escrever sobre Bem Bom, o biopic sobre as Doce, a mais épica girlsband portuguesa.
Eu, que raramente fixo letras de música, preciso das canções a tocar para me lembrar até das minhas preferidas, ao longo da vida fixei duas ou três, excepto das Doce, onde sei as letras inteiras, das canções mais populares. Está tudo dito, sempre fui fã das Doce, desde os 11, 12 anos, pelo que a escandaleira à volta delas me passou um pouco ao lado, e ainda bem. Lembro-me só de se dizer muito mal da "loira das Doce", que era uma badalhoca ou coisas piores, mas não me lembro da difamação abordada no filme em concreto, mas que terá sido o que gerou tal má língua dirigida a ela e à banda em geral.

As Doce foram uma conjugação inusitada e mágica de boas ideias, a maioria muito arrojada para o Portugal cinzento, e acabaram por ser pioneiras em muitas coisas que, um pouco depois e lá fora, tiveram o dobro ou o triplo do sucesso que elas tiveram. Foi demasiado cedo? Talvez. No país errado? Definitivamente! Mas uma coisa eu digo desde o esmorecer e depois fim da banda, elas mereciam mais, sobretudo respeito!

O filme de Patrícia Sequeira consegue mostrar-nos tudo o que nós, pré-adolescentes e adolescentes da época nos lembramos e aquilo que nos era vedado. Conta a história da banda, desde a sua construção até vencerem o Festival da Canção, de forma linear, clássica e realista. É um filme muito competente, que poderia estar ao lado de outros biopics semelhantes, mas com uma produção hollywoodesca. Assim de repente, lembro-me de uma série deles, uns melhores que os outros, mas muito poucos passados nos anos 80. Gostei muito da mise-en-scéne, gostei da montagem ágil, tem pormenores muito bonitos e bem feitos. O argumento é sólido e aborda muito bem os preconceitos e escândalos que rodearam as Doce. A única coisa que me pareceu, desde o início do filme, muito fora do contexto, foi a secretária, sempre tímida e submissa, para no fim ter um discurso motivacional um bocado forçado. Mesmo a interpretação da actriz foi, dos papéis mais recorrentes, a que menos gostei. Forçado é a única palavra que encontro para a descrever.

O elenco é quase perfeito! Quase todos os actores principais partilham grandes semelhanças físicas com as pessoas que retratam e o resto foram cabelos e maquilhagem. Nem sei como conseguiram encontrar alguém tão parecido com o Tozé Brito, que tem uma fisionomia muito invulgar. Só o Mike Sargeant era mais magro e mais bonito que o actor que o retrata. Até fiquei, "ah pois, é ruivo, tem de ser o Mike Sargeant", mas a figura dele era mais vistosa que no filme.
As interpretações, sobretudo das quatro actrizes, Bárbara Branco (Fátima Padinha), Lia Carvalho (Teresa Miguel - a "ruiva"), Carolina Carvalho (Lena Coelho) e finalmente, Ana Marta Ferreira (Laura Diogo), são impecáveis, sobretudo quando penso que a maioria tem navegado, mais ou menos anonimamente, pelas águas estagnadas das telenovelas em grande parte das suas carreiras. Reconheço as caras de todas, mas concretamente só me lembro do trabalho de Ana Marta Ferreira, que provavelmente vi pela primeira vez, miúda, na Floribella. Já não acompanho novelas portuguesas há imenso tempo, mas cheguei a ver algumas séries juvenis. O restante elenco também tem um bom desempenho, fora a já mencionada secretária. 

Em termos visuais, destaco uma direcção de fotografia muito bonita, com cores de pedras preciosas e uma luz que lembra os bares à antiga de Lisboa, como o Snob ou o Procópio.
Divido os figurinos em duas partes, os figurinos à civil e os dos espectáculos. Os dos espectáculos estão perfeitos, executados magistralmente pela Miss Suzie, com quem me cruzei no secundário. Com certeza que ela teve imenso gozo em recriá-los, e isso nota-se! Os figurinos à civil têm um pequeno desfasamento, mas creio que foi uma decisão criativa, para gerar coerência visual. O filme começa em 1979, mas Fátima Padinha já veste blusões e camisolas que só se popularizaram cerca de 1982. Mas como é uma sequência relativamente curta e introdutória, não me chateia, pois estabelece a caracterização visual de Fátima. Fora essa pequena incoerência, as peças usadas parecem todas genuínas, mesmo que não o sejam, e estão consistentes com o que raparigas de 20 anos vestiam na altura e com as próprias Doce. Os figurinos dos homens, mais conservadores, também estão consistentes com a época, mas é bem mais fácil, já que mudou relativamente pouco desde então. Depois foi engraçado ver as manobras mirabolantes que José Carlos teve de fazer para trazer tecidos de espectáculo, na candonga, para Portugal. Não foi pormenor que pudesse deixar passar, pois era mesmo assim. Nos anos 80, em Lisboa, havia 5 vezes mais lojas de tecidos que agora, os tecidos eram de boa qualidade, mas a variedade era pouca. Lembro-me bem, quando comecei a comprar tecidos, de haver muito pouca coisa com brilhos ou malhas além da lycra, era quase tudo na base dos algodões, linhos e fazendas, e coisas como boás de penas ou tecido de lantejoulas eram caras e raras. Ainda hoje é difícil encontrar alguns desses materiais mais exóticos nas lojas mais antigas que sobreviveram. E depois havia a questão da importação. A malta hoje queixa-se da alfândega, mas naquela época era pior. Numa viagem a Inglaterra em 1983, eu vi uma meloa a ser confiscada no aeroporto inglês, pois era proibido levar comida fresca para o Reino Unido. Tinha a ver com o facto de não haver raiva nas ilhas britânicas, ou assim me disseram.

Antes de ir ver o filme, estava receosa de ter aquela visão feminista moderna, de #metoos e afins (nada contra, mas não queria que um filme sobre uma girlsband se tornasse num instrumento militante), mas achei a abordagem aos problemas que as meninas tiveram de enfrentar justa e elegante. Também gostei de vir a saber melhor o que se passou com Laura Diogo, o ser humano é realmente mesquinho! Espero sinceramente que ela esteja em paz com a vida e que aquele evento nojento tenha deixado de pesar. Ninguém merece!

No geral, também foi emocionante e muito divertido fazer esta viagem ao passado tão bem feitinha e cantar as músicas sempre que surgiram no filme. O filme merece todo e mais algum destaque que tenha tido e espero que este modesto post, leve mais alguém a ver o filme.

Bem Bom (imdb)

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