A época do Império está na moda no Brasil, mas a moda Império não parece conseguir vingar nas produções da Globo. Depois da interpretação altamente fantasiosa de Liberdade, Liberdade, agora chega Novo Mundo, ambos passados nas primeiras décadas do séc. XIX, e a sensação de um trabalho desleixado pervalece, ainda mais que na sua antecessora. É uma pena.
Vou falar primeiro do que gosto. O trabalho de actores, principalmente o esforço de alguns actores brasileiros para falarem em português de Portugal é de louvar, principalmente o de Caio Castro, que desempenha o papel de D. Pedro I. Juro que estou impressionada! Menos impressionada estou com o esforço dos argumentistas em usar o vocabulário correcto, bastava ler Gil Vicente ou Camilo Castelo Branco, não estaria muito longe disso. Até há bem pouco tempo, principalmente nas camadas da nobresa portuguesa, absolutamente ninguém se tratava por "tu". Não precisava de ser um texto vicentino, mas uma adaptação, até porque é bastante parecido com o actual português do Brasil. Mas como os brasileiros adoram reduzir os portugueses a um punhado de clichés, não é de admirar. Impressionada também estou com o trabalho de Letícia Colin, como Princesa Maria Leopoldina da Áustria, que soube adoptar lindamente todos os tiques de uma nativa da língua alemã a falar português.
Numa novela com tanta personagem portuguesa, é triste averiguar que a grande maioria dos actores portugueses envolvidos na produção tenham papéis tão secundários ou curtos. A pobre Joana Solnado mal aqueceu o lugar! Já não vejo o Ricardo Pereira há que tempos e a coitada da Maria João Bastos já morreu. Mesmo Paulo Rocha tem um papel secundário em toda a trama, apesar de ser o grande antagonista político de D. Pedro. Enfim, mais uma vez somos reduzidos a um punhado de padeiros de bigode...
Agora os aspectos verdadeiramente negativos, o design de produção, em particular o guarda-roupa. Alega o director artístico da novela, Vinícius Coimbra, que pesquisou e inspirou-se nas gravuras da época do francês Jean Baptiste Debret, estive a ver uma série de gravuras dele, disponíveis online aqui, e pouca coisa corresponde ao que se vê na novela. Há consideravelmente menos porcaria, as ruas das cidades são na grande maioria calcetadas (dá menos trabalho desenhar um chão de pedra que de terra), os escravos não têm um ar maltrapilho, mas vestem um traje muito semelhante ao típico das baianas, e as senhoras mais abastadas estavam completamente na moda. Creio que as gravuras sejam bastante realistas, os índios são apresentados praticamente nus, órgãos sexuais à mostra. O seu intuito foi claramente o de uma documentação mais científica que artística, e não me parecem ter sofrido grande censura, seja ela de uma moral puritana ou da parte do artista. O que me surpreendeu foi o comprimento das saias, em geral um palmo mais curto do que o que se vê nas gravuras de moda da época (francesas, inglesas ou americanas).
Também temos que ver que, ao contrário de Liberdade, Liberdade, Novo Mundo não é uma novela realista, mas uma adaptação algo leve e satírica de factos históricos, aliados a uma narrativa principal de ficção. Portanto uma certa estilização seria bem aceite e deixar a porcaria na pocilga.
Já o director artístico insiste num aspecto maltrapilho e porcalhão da população em geral e até mesmo da nobreza. Apesar de usar um figurino historicamente correcto em Maria Leopoldina, o ar desleixado da combinação sempre à mostra, do cinto torto, o vestido mal ajustado, são muito pouco plausíveis numa dama da nobreza, de origem austríaca, mesmo que num Brasil quente ou falido. Até porque falamos numa epoca em que a moda eram vestidinhos leves de cambraia de algodão, o mais indicado para aquele clima. A personagem fictícia de Anna Millman, desempenhada por Isabelle Drummond, usa uma silhueta mais ou menos adequada, mas tecidos demasiado modernos, longe do que era a moda, e os cabelos sempre soltos, nem um carrapito ou uma trança para fazer figura. E como é que Anna está sempre impecavelmente ensaboada no meio daquele desleixo e imundície? Ah e as cinturas descaídas nos homens, um detalhe completamente moderno, do séc. XX-XXI, enquanto que a moda eram calças com a cintura quase no pescoço?
Eu aceito personagens fantasiosas, como os piratas, eu aceito personagens claramente grotescas como os donos da tasca, aceito fatos repetidos, pois a corte estava falida, aceito uma certa simplificação do guarda-roupa, pelas mesmas razões, até aceito certas liberdades nos figurinos, como as de Anna, não fosse o desleixo transversal e sem uma justificativa nem na cartacterização das personagens, nem na narrativa. A Princesa manteve uma criada pessoal mesmo depois do corte nas despesas, isto na narrativa da novela. Não há razão para andar mal arranjada. Para um bom guarda-roupa da época Império, vejam Pride and Prejudice, de 1995, da BBC!
O que mais me surpreende é que o Brasil, país produtor de algodão, com um leque rico em artesanato de rendas, crochets e bordados, não os usa a seu favor e cria um guarda-roupa que provavelmente até lhes saíria mais barato, uma boa montra do que se faz no país, para além de genuíno? Dizem que fizeram pesquisa, até caem na asneira em citar a fonte principal de inspiração e depois o resultado está bem longe da mesma... intrigante, ou falta de brio? Rigor histórico ou caprichos da vaidade? História ou caricatura? Se a caracterização física estivesse mais correcta e fosse mais subtil, menos grotesca, a narrativa sobressairia mais e a novela resultaria mais sofisticada.
Novo Mundo
Há 9 anos
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