Nesta última entrada na Matrix, alguém diz que "The Matrix is brain porn" (sic). Pois é, concordo, pena que, tendo inteiramente consciência disso, as manas Wachovski não nos tenham dado brain porn em 3 dos 4 filmes, mas se tenham entregue a devaneios com orçamento hollywoodesco.
Atenção, eu até gosto dos devaneios das manas, mas eu tenho um gosto esquisito, talvez exceptuando o Speed Racer, mas por razões que se prendem com a falha completa das adaptações de anime ou manga a live-action pelos americanos. Mas os devaneios das manas são basicamente filmes de autor com orçamentos nível Disney, que ganhavam mais com um orçamento espartano e um produtor à maneira, que as faria concentrar-se naquelas duas palavrinhas-chave, que lhes deram o seu único e verdadeiro êxito: brain porn.
Para além das inovações tecnológicas (até hoje alguém vive com o arrependimento mortal de não ter registado a patente do bullet-time), da estilização visual e sonora completamente inovadora, o The Matrix tem uma base filosófica e de ficção científica pura e dura, que se vê em muito poucos filmes, sobretudo de género, mas também independentes. Ainda se podem ler no site original, através da Wayback Machine, os textos que foram escritos à volta das várias teorias que são expostas no The Matrix, por alturas da estreia das sequelas, e por pensadores modernos. Vão lá lê-los, se gostam de ficção científica e de brain porn. Vale a pena! Já agora que lá estão, naveguem um bocadinho no site, que é uma obra prima da infância da internet. Mesmo quem não faz questão do brain porn, ou nem sabe o que isso é, é exposto de forma muito inteligente a questões filosóficas que, acredito, passam pela cabeça de qualquer pessoa, mais cedo ou mais tarde nas suas vidas. São questões básicas, sem resposta, provavelmente nunca terão resposta. É aí que entra a ficção científica e a criatividade de quem a concebe (não importa o formato), está na concretização ou alguma hipotética resolução para essas questões que nos assolam em maior ou menor grau. O The Matrix também é um sinal do tempo em que foi criado, e aí é, como toda a ficção científica, datado. Quando digo "datado", não é envelhecido. Sempre achei, principalmente desde que comecei a ler ficção científica na adolescência, que a f-c espelha a realidade em que foi escrita, e é um exercício que gosto de fazer sempre que leio um livro novo, tentar identificar a sua época. Em geral acerto. Acerto não porque seja especialmente perspicaz, mas porque a ficção científica, o eterno menosprezado género literário, é o que sempre melhor nos mostrou a época em que foi criado e tem quase sempre por base conceitos filosóficos e humanistas. Digamos que é filosofia em formato pulp. E também é uma das grandes razões porque adoro a ficção científica em todos os seus formatos.
Então afinal porque não fazem falta os outros filmes? Primeiro porque, apesar do final em aberto, o The Matrix encerra ali todas as questões levantadas: A Alice no País das Maravilhas, o Brain in a Vat, as realidades manipuladas, a formatação das massas, o mito do escolhido, o messias, etc., etc., etc. Não eram necessárias mais explicações. Mais explicações são tomar o espectador por burro, é mansplaining, é bater no ceguinho. Mais, toda a elegância "estilosa" do primeiro, mesmo na "realidade", foi gradualmente sendo substituída pelos devaneios de mud wrestling e afins das manas. Basicamente elas complicaram o que já estava muito bem exposto, acrescentaram informação redundante. Deviam, como o George Lucas e o Spielberg, ter lido o Hero's Journey, do "amigo" Joe Campbell e K.I.S.S., Keep It Simple, Stupid. Mas esses dois também não aprenderam bem a lição, ou já se esqueceram.
Se o Reloaded e o Revolutions não faziam falta, o Resurrections menos ainda, mas por razões um bocadinho diferentes. A redundância está nos três, mas no Resurrections o grande problema é outro: a história é muito fraca, com mais buracos que um queijo suíço e parece que quiseram fazer do Matrix um filme da Marvel, com opções estilísticas muito questionáveis. Infelizmente Lana Wachovski entrou na moda dos filmes de acção com uma narrativa quase inexistente, personagens com pouca ou nenhuma densidade e cenas de acção atrás de cenas de acção, reforçadas por aqueles efeitos sonoros mega irritantes dos graves com doppler, que compõem a banda sonora inteira de uma porcaria chamada Aquaman. Pior, estas cenas de acção à Marvel, são daquelas em que está TODA a gente envolvida vestida da mesma cor, são pelo menos 3 ou 4 envolvidos, na maioria das vezes mais, e não se percebe patavina do que está a acontecer. Terem essas cenas ou uma descrição escrita das mesmas no ecrã, seria para mim a mesma coisa. Talvez a versão em texto até fosse melhor, pois ao menos assim deveria perceber melhor o que está a acontecer (pontos para os artistas de storyboard que, de alguma forma, terão conseguido interpretar aquela salgalhada em imagens).
Depois há a questão da estética visual. Na cena do átrio em The Matrix (sim, eu sei, baseada em Ghost in the Shell - continuo a preferir a cópia ao original), entre câmaras lentas e efeitos acrobáticos, percebe-se sempre o que se está a passar. Há um ritmo musical no modo como essa e as outras cenas de acção foram coreografadas, entre actores e câmaras, que é maravilhoso de ver e rever. As dos outros filmes foram-se tornando cada vez mais confusas. Os figurinos e cenários, com a predominância dos pretos e verdes, algum branco para os Agents (o Neo e os amigos nunca usam branco - nos filmes seguintes esse código de cores não é respeitado), dá-nos simultaneamente a sensação de insólito e a certeza que não estamos na realidade. Mesmo a "realidade", em cinzento e azul, é codificada cromaticamente, com Neo e Trinity a vestirem praticamente a mesma coisa, as mesmas camisolas cinzento mesclado com malhas puxadas, os mesmos jeans cinzentos gastos. Os outros, com variantes noutros materiais "orgânicos" e com a mesma paleta de cores. Esses códigos de cores, mais ou menos assumidos, são fundamentais sobretudo para narrativas distópicas, reforçando emocionalmente a suspensão da descrença, oferecendo ao espectador uma coerência visual que nos deixa confortáveis no universo em questão. Tornar uma narrativa que não é naturalista e realista, visualmente realista, não a torna mais "real" para o espectador e até faz com que se perca essa suspensão da descrença, pois começamos a avaliá-la com os nossos valores da realidade, que quase nunca correspondem realmente aos valores do universo no ecrã e acabam por distrair-nos. Mesmo em filmes mais realistas, há um controlo visual cuidado, que só é bem feito quando não se dá por ele enquanto se está a ver o filme. No início de The Matrix, não percebemos logo que a paleta de cores é limitada, pois pessoas vestidas de preto e luz esverdeada, é bastante credível na nossa realidade, a luz fluorescente fotografa naquele tom, se não usarmos um filtro corrector. Portanto, essa paleta é familiar. Só damos realmente pela limitação, quando nos é dado o termo de comparação, primeiro com o tom âmbar das cápsulas das Machines e depois com a "realidade" cinzenta e azul.
Porque, não achando eu que as 3 sequelas fazem falta, fui vê-las na mesma ao cinema? Os Reloaded e Revolutions foi na esperança de ainda haver um coelhinho branco para seguir, este Resurrections foi por desporto, por querer ver novamente o Neo e amigos (e o eye candy do Keanu Reeves) no grande ecrã e porque a pandemia deu-me mais vontade ainda de ir ao cinema, apesar de o orçamento nem sempre o permitir. Ah, mas o Resurrections tem uma coisa de que gostei muito, foi ter como base não a Alice no País das Maravilhas, mas a Alice do Outro Lado do Espelho. Não fosse ter tido que enfiar voluntariamente uma zaragatoa no meu próprio nariz, teria valido a pena só por isso. Mas o filme não é responsável por a cultura ser a culpada de todos os focos da pandemia. NOT!
O The Matrix, como franchising, ou fandom, ou o que lhe quiserem chamar, está tão velho e partido, como infelizmente também estão os meus óculos da Trinity, uma das minhas primeiras compras na internet. Ah sim, os óculos deste filme são normalérrimos... O DVD do The Matrix foi o primeiro DVD que comprei, e nunca tive grande vontade de comprar os outros dois filmes ou a box que saiu mais tarde com os três. Este não quero mesmo comprar. Para além disso, o Matrix como franchising, será sempre de segunda, a não ser que a Disney lhe meta as patas em cima. Isso significa, que daqui a um ano, ano e meio, temos os 4 filmes a passar em maratona num qualquer canal de cabo, como já temos volta e meia os três anteriores.
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