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14 janeiro 2024

New York, New York!

Apesar de ser fã incondicional do seu trabalho, só soube quem foi Roy Halston quando, por volta da altura da sua morte, comecei a entrar no mundo de Andy Warhol e da sua Factory. Percebi que Halston fazia parte do grupo do Studio 54 (ai, quem me dera ter sido uma mosquinha e estar no Studio 54 enquanto aquilo bombava!), portanto, festas, glamour, e muitas drogas recreativas. Foi também nessa altura que comecei a perceber que estava ali uma pessoa com uma história que tinha pano para mangas.

Halston, a curta série da Netflix, conseguiu preencher bem esse contar da historia da personagem Halston. Naturalmente, como todas as séries ou filmes biográficos, nem sempre se dedicam a contar os factos reais,  mas frequentemente tomam atalhos ou reinventam acontecimentos, de modo a melhor encaixar numa narrativa coesa. Quando isso é bem feito, uma pessoa até pode sentir alguma curiosidade em saber os factos reais, mas não sente falta de o saber para melhor disfrutar desse episódio ou filme.

Nisto a série Halston acerta na mouche e quero lá saber dos factos reais! O que vi no ecrã é dinâmico, verosímil, empolgante, visualmente interessante e muito bem acompanhado por uma selecção musical. 

A recriação dos espaços, principalmente o "atelier" de Halston, com as janelas panorâmicas, mobília minimalista e alcatifa vermelha, ou o seu apartamento, também minimalista, mas em branco e preto, com cortinas do tecto de pé direito duplo até ao chão, são impressionantes e um espanto. Tanto quanto dá para perceber pelos registos existentes, também estão impecavelmente reproduzidos.

O mesmo posso dizer dos figurinos de Halston, os vestidos de seda esvoaçantes, em viés, as sua marca registada e o que realmente o fez um génio do design de moda,  não o "ultrasuede", que sendo vanguardista, foi a base para financiar a criatividade livre desses vestidos drapeados. Li no imdb que a figurinista da série se esforçou para fazer réplicas fidedignas, mesmo que por vezes, por questões técnicas, tivesse de fazer alguns desvios criativos. Excelente trabalho! Recriar figurinos de épocas mais recentes, que ainda estão na memória colectiva e facilmente podem ser acedidos em museus ou registos fotográficos, às vezes é o mais difícil, pois a margem de erro e criatividade é bem mais limitada. O desafio é ainda maior quando o que se está a recriar foi concebido por um génio único.

O mesmo tipo de abordagem foi feito no modo como foi contada a história de Halston. Os flashbacks à infância foram mantidos num mínimo, uma espécie de memória onírica, um Rosebud wellesiano, com um grande foco em mostrar o estilo de vida único daquelas pessoas, fora do alcance do comum mortal. Mesmo antes de fazer fortuna, Halston comportava-se como um milionário e fê-lo até morrer. Aliás, essa riqueza aparente é um dos pontos-chave desta história, já que no fim da vida vendeu o seu nome para poder manter o estilo de vida.

Estilo de vida que passou de um pudor para com as drogas, para um consumo desbragado de coca, orgias de sexo e festas atrás de festas, incluindo ser cliente habitual do Studio 54. Falando em Studio 54 e em recriações, depois de ver alguns documentários acerca da discoteca, fotografias das festas e afins e ler sobre esse breve local cintilante de Nova Iorque, mesmo no limite do início da decadência da vida mais-que-boémia daquela cidade, a recriação do ambiente, mostrando personagens notórias que o feequentaram regularmente, Warhol, Divine, Bianca Jagger montada no cavalo branco na festa do seu aniversário, o sexo sem pudor na varanda, a nudez, o suor, a música, foram a melhor recriação que já vi de um lugar onde gostaria de ter estado pelo menos uma vez, por uns minutos que fosse. A isso tenho de agradecer aos criadores da série, pois consegui sentir-me lá dentro por uns segundos. A propósito, o actor que faz de Steve Rubell, um dos sócios da discoteca, estava igualzinho, incluindo a diferença de altura em relação a Halston. Rubell um judeu baixinho, Halston um homem alto. A atenção ao pormenor é impecável em todos os aspectos.

Também gosto do modo como o guarda-roupa de Halston acompanha dramaticamente a personagem, sempre impecavelmente vestido e sempre com as suas gabardinas com grandes golas levantadas, começa vestido de roupa mais ou menos banal, colorida, a gabardina em pele castanha, passa para o preto da cabeça aos pés, golas altas, óculos escuros, gabardina preta em pele ou tecido de gabardina, quando Halston se tenta impor no mundo da moda. A gabardina passa a ser ocasionalmente branca, em tecido de gabardina, quando se estabelece, oscilando entre o preto e o branco por um período relativamente longo. A gabardina passa a vermelho no início da decadência e quando fica doente volta ao preto e branco, à gabardina em pele, passando gradualmente para o branco da cabeça aos pés e trocando a gabardina por uma camisola de torcidos (branca) no período da "reforma".

Nem todos os actores são fisicamente muito decalcados dos originais, a começar por Ewan McGregor, mas a caracterização física, o guarda-roupa, maquilhagem e cabelos, determinados pormenores, fazem-nos ser convincentes, e tornam-nos reais.

Como já dei a entender, a mise-en-scéne da série é maravilhosa e mostra muito bem as personalidades e acontecimentos fora do alcance do comum mortal, com muita simetria, movimentos de câmara amplos, filmando Halston com frequência em contrapicado, o que o torna mais alto e trabalha a personagem como se fosse um monumento, um semideus. Mesmo nos momentos mais baixos, de um Halston deprimido, a câmara raramente sobe além do nível do olhar, tratando-o sempre como alguém maior que o mundo.

Mas é o desempenho de Ewan McGregor que arrasa com tudo o resto! Sou fã dele há muito tempo, antes de Trainspotting. Vi-o pela primeira vez na série musical de Dennis Potter, Lipstick on My Collar, e já nessa altura fiquei muito impressionada, e acho que McGregor é um actor muito completo. Todos os desempenhos que vi dele ("Hello there!") nunca decepcionam e mostram o seu registo alargado. Como Halston ele domina completamente a cena, como provavelmente o próprio Halston fazia. Não se consegue desviar os olhos do ecrã. 

Como se não bastasse, a escolha de elenco e os excelentes desempenhos nao se ficam por aqui, destaco Krysta Rodriguez, maravilhosa como Liza Minelli. Além da semelhança física, Rodriguez soube capturar maravilhosamente bem a personalidade e maneirismos de Liza, até a voz está parecida. Rebecca Dayan, como Elsa Pereti, também se destaca no elenco principal e Bill Pullman foi a escolha certa para o empresário David Mahoney. Aliás, não há um único actor que se destaque no mau sentido, não há um unico mau desempenho. Foi divertido ver a personagem (real) de Joel Schumacher aparecer na série. Li algures recentemente, provavelmente quando a série saiu, que tinha sido assistente de Halston. 

Por fim, a banda sonora não desaponta, tratando-se de uma compilação de vários temas musicais, que não se reduz ao contemporâneo da época ou ao disco, misturando temas mais modernos para um efeito dramático que funciona mesmo bem.

Na recriação impecável dos anos 60 a 80, daquela faixa social muito específica, de uma Nova Iorque em ebulição, com desempenhos poderosos, uma realização firme e emocionante, uma produção coesa e equilibrada, Halston é das melhores séries modernas que já vi. Uma surpresa muito boa, pois apenas me interessei pela série porque o tema me interessa e pela curiosidade em ver Ewan McGregor a interpretar uma personagem tão diferente.

Halston

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