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16 novembro 2016

Da Liberdade Criativa

Liberdade, Liberdade é uma daquelas novelas/séries brasileiras feitas para o Emmy. Em Lado a Lado resultou tão bem que realmente venceu o Emmy Internacional para a Melhor Novela. Este tipo de produção parte de uma inspiração histórica, com temas directamente ligados a períodos-chave na história do Brasil, a independência e a abolição da escravatura, respectivamente, unidos por uma trama com personagens de ficção, vagamente inspirados em personagens ou acontecimentos reais.

Enquanto que Lado a Lado conseguia ser mais lúdica na abordagem da transição para o modernismo e estava estruturada como uma novela normal, incluindo vários núcleos, como o clássico cómico como elemento de descompressão, Liberdade, Liberdade, na sua abordagem grave à luta pela indpendência do Brasil, é à partida mais desequilibrada, desconjuntada e difícil de digerir. Mas tratando-se de uma ficção, baseada em factos históricos, mas sobretudo uma ficção, não vou criticar muito por aí. A premissa é boa, a história de uma suposta filha do Tiradentes que serve de charneira para contar parte da história da independência do Brasil, dos Inconfidentes e do estado de Minas Gerais.

A liberdade criativa a que me refiro tem mais a ver com escolhas da direcção artística da novela, na sua grande maioria um pouco questionáveis.

Para começar: tanto banho que eles tomam! Numa época, início do séc. XIX, em que é sabido que se tomava um banho por mês, talvez um por semana, em que o fedor era disfarçado, por quem podia, com perfume e maquilhagem, os protagonistas desta novela tomam banho quase todos os dias, nobres ou ladrões. Eu sei porque é que estas cenas existem, é uma tentativa de apimentar a coisa com cenas de nudez (e sexo - sexo vende), e mostrar amiúde o belo traseiro de Mateus Solano (nham!), entre outros. Mas é inverosímil e ainda por cima inconsistente com a constante sujidade nas faces das personagens, um cuidado que foi decidido pela equipa de caracterização e maquilhagem da novela (ver site oficial).

Nem vou me alargar pela banda-sonora, que varia entre sons medievais entre o povo, o mesmo cão a ganir constantemente e valsas posteriores à época retratada.

Depois temos um guarda-roupa muito inconsistente e historicamente a atirar para todos os lados. O conceito do guarda-roupa feminino parece saído da mente de uma menina de 10 anos que se quer mascarar de "dama antiga" no Carnaval.

O guarda-roupa masculino é mais coerente, mesmo sendo muito mais fácil isso acontecer por a moda mudar mais lentamente que a feminina. Temos casacas do final do séc. XVIII a conviver com colarinhos levantados do período Império, que é plausível, dado estarmos numa província além-mar de Portugal, que nunca primorou por estar na vanguarda da moda, muito menos a masculina. Aqui, fora um ou outro detalhe, gosto das opções da equipa da novela e não me fazem confusão.
As roupas dos escravos ou população pobre em geral estão plausíveis q.b., utilizando o algodão, linho e lãs, em tons de terra e silhuetas simples. Fora, mais uma vez, um ou outro detalhe e talvez roupas de escravos demasiado maltrapilhas ou rasgadas, também não me chateiam.

Mas é no guarda-roupa feminino que a porca torce o rabo. Temos figurinos que abrangem um período na moda de quase 100 anos, o que mesmo com os atrasos previsíveis não é plausível. Vou contextualizar um pouco. No final do séc. XVIII e início do séc. XIX, um período de transição na moda, foi introduzida com as invasões napoleónicas e a sua utopia de um novo Império Romano, a silhueta Império de vestidos diáfanos de cintura subida, de inspiração romana. Dado a novela se passar na província do Brasil, na cauda da possível vanguarda da moda, é normal que famílias há muito sediadas em Minas Gerais, ou nas gerações mais velhas, se vejam com frequência silhuetas séc. XVIII. O que não é plausível é ver-se em mulheres nobres, vindas directamente de Paris ou mesmo de Lisboa, Robes-de-sac, os vestidos séc. XVIII que têm uma espécie de capa nas costas, do início a meados do séc. XVIII. Isto era o que se usava no final do séc. XVIII e era isso que eu esperava ver nas gerações mais velhas da nobreza ou classes abastadas da novela. Nas gerações mais novas esperava ver muitos algodões, linhos, talvez algum organdi e umas golas de renda, em silhuetas Império ou na fase anterior, coisas como Chemise à la Reine ou semelhante. Exemplos como estes. Ainda por cima no Brasil, com um calor dos diabos! Em vez disso vejo imensos híbridos, que não são nem carne nem peixe, que não seguem corrente de moda alguma, que são uma mistura de materiais estranha ou muito à frente da sua época, com chiffons, veludos, rendas elaboradas, pedrarias, silhuetas cintadas que mais fazem lembrar o final do séc. XIX e não o seu início.

Percebo que queiram apresentar arrojo e sensualidade à protagonista Rosa//Joaquina, doçura e romantismo à sua irmã/acompanhante Bertoleza ou desajuste espampanante a Branca. Fora Branca, que é a única jovem de origem abastada onde permitiria alguma margem, devido a ser um bocado louca, deslumbrada e fantasista, onde é que na moda do início do séc. XIX não há sensualidade, com tecidos transparentes e decotes generosos, ou romantismo em saias diáfanas e a possibilidade de muitas decorações florais. Os fatos tanto de Rosa como de Bertoleza são demasiado modernos, nos materiais como nas silhuetas e isso enervou-me tanto que me distraiu do principal, da narrativa. Nem os achei particularmente bonitos, eram demasiado vestidos de noiva para o meu gosto. A única personagem com uma silhueta Império correcta foi a Princesa Carlota Joaquina, se bem que com chiffon e pedrarias a mais para o meu gosto. Mas perdoo-lhes, ela era uma desbragada.

Os cabelos também sofrem da clássica falta de ganchos, como se queixam constantemente as moças do Frock Flicks, e uma ausência de chapéus ou toucas chocante para a época, especialmente os de Branca Farto, mas as perucas são muito boas e convenientemente decadentes.

Por fim temos o bordel, que é onde a imaginação vai de rédea solta. Lá temos uma conjugação de farrapos com materiais e cores nobres, caros e difíceis de arranjar, como veludos e cores intensas e escuras, com corpetes vitorianos e elementos steampunk... pois. OK, as prostitutas, tal como os bandidos, podem ser mais fantasistas, mas que haja alguma consistência. A moda-bordel pelos vistos é sempre igual, seja no séc. XVIII, XIX ou anos 20 (ver a nova versão da Gabriela).

Caramba, com os materiais que o Brasil tem, os meios topo de gama da Globo, decerto um exército de costureiras, um orçamento generoso, uma pesquisa fácil de fazer, não percebo esta tentativa de "realismo" muito pouco realista. Eu tenho imensa pena, pois os brasileiros da Globo já foram muito melhores nisso, já tiveram uma preocupação histórica muito mais séria, mesmo que por vezes implicasse os inevitáveis cetins de poliéster dos anos 80, que no vídeo NTSC ainda pareciam mais ofuscantes.

Contudo, gosto imenso de o Brasil andar a querer contar a sua história, mesmo que de um modo algo fantasista, mas gostava de ver maior coerência histórica, visual e entre equipas.

Liberdade, Liberdade

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