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22 fevereiro 2019

O Chef Punk

Este post era para ter sido escrito há anos, ainda no tempo em que o No Reservations dava na SIC-Radical (e que eu ainda via regularmente a SIC-Radical). Quando Anthony Bourdain tirou a própria vida, pensei em escrevê-lo, com muita pena da circunstância que me levaria a escrevê-lo. Como não queria que o post se transformasse num elogio fúnebre e por ter ficado bastante chocada com o suicídio, resolvi deixar este post para uma altura em que pudesse fazer justiça ao brilhantismo de Bourdain. Terminei agora de ver a derradeira série de Parts Unknown, chegou o momento.

Sou fã incondicional de Anthony Bourdain, apesar de por vezes a sua insolência e exagero em No Reservations me cansar, o resto compensava: os locais exóticos que de outra forma talvez nunca tivesse ouvido falar, de uma perspectiva sobre esses locais mais íntima, de não temer o diferente, o novo, de ser politicamente incorrecto e de chamar os bois pelos nomes. Bourdain deu voz aos inconformados, à rebeldia e a um modo de ver a vida sem filtros.

Apesar das diferenças, Parts Unknown desviou parte da atenção à comida para focar -se mais na cultura e na política dos locais visitados. Confesso que as duas séries se fundem um bocado na minha cabeça, dentro dos vários episódios que ficaram distintos na minha memória, há obviamente os portugueses (Lisboa, Açores e Porto), que pareceram-me incompletos, provavelmente pareceram sempre incompletos aos nativos do respectivo país - atribuo parte disso aos anfitriões escolhidos, que nem sempre estiveram à altura.
Entre os outros países há vários: no geral os norte-americanos aborreceram-me, pareciam-me sempre um monte de hillbillies a enfardar barbecue, mas há excepções. Os da Louisiana, foram sempre interessantes, sempre tive curiosidade pela cultura e pela comida cajun, deve ser deliciosa! Nova Iorque é interessante, mas demasiado hipster, apesar da sua notória aversão aos hipsters, "com os seus gorros de Estrumpfe" (sic) e o resto são hillbillies a enfardar barbecue, com uma ou outra curiosidade pelo meio.
Os da América Latina são sempre engraçados, especialmente marcantes foram os da "família", quando Bourdain vai em busca de antepassados e encontra o irmão, senão me engano no Uruguai, e o do Rio de Janeiro, com a então mulher e os praticantes de Jiu Jitsu.
Não tenho grande memória dos episódios africanos, expto o de Tânger, levado pela boémia europeia de outrora, e o de Moçambique, que revelou um país quase abandonado, mas culturalmente riquíssimo.
Na Ásia, provavelmente o continente preferido de Bourdain, os programas são sempre mágicos. Os do Vietname memoráveis, os do Japão um regalo, todos eles uma descoberta. Como ele diz no último episódio de Hong Kong, "apaixonei-me na Ásia e pela Ásia", isto leva-nos a Itália e aos melhores episódios de todos.
Entre os episódios europeus, os franceses e os espanhóis, em particular o do encerramento do El Bulli, foram excelentes, mas, como os de Nova Iorque, são aquele tipo de episódio "daquilo que não podemos ter", interessantes, educativos, mas distantes. Em lado nenhum Bourdain vibra como em Itália. De Norte a Sul, à mesa da nonna de serviço. Nunca esquecerei o momento em que ele mergulha nas pedras da costa amalfitana, apanha uns quantos ouriços do mar (iguaria predileta) e come-os ali mesmo, em frente ao restaurante do seu anfitrião. Depois há o episódio da Sicília, com Asia Argento. Só pouco depois de ver o episódio eu soube que se tornara namorada dele. Ambos visitam locais incríveis e vivem uma Itália riquíssima.
Deixei o campeão para o fim: Parts Unknown, temporada 1, episódio 1. Québec. Bourdain junta-se a dois chefs mais loucos que ele. Têm uma casinha de madeira sobre rodas para pescar no gelo, mas em vez de pescarem, apesar de às vezes o fazerem, levam um farnel dos pratos mais sofisticados que possamos imaginar, foie gras, caviar, champanhe, lagosta, etc., e servem-nos na diminuta casinha, com todos os requintes de malvadez: candelabros, toalha bordada, baixela de prata, serviço de porcelana, copos de cristal. Um deles diz que come assim em casa, sempre, e "obriga" os filhos pequenos a consumir as refeições assim. Genial!

Chego assim à derradeia temporada. Não consegui vê-la sem uma sensação testamentária, até porque, fora Itália, França e Espanha, Bourdain faz uma espécie de síntese do que foram todos os seus programas e séries. Os meus preferidos? Berlim, Louisiana e Butão. Berlim conheço, gosto e foi um episódio que só podia ser feito por ele. A comida no Louisiana deve ser muito boa e é um local fascinante. O Butão deve ser dos países mais únicos no mundo e a visita de Bourdain, acompanhado por Darren Arronovsky, uma aventura no mínimo insólita. O Bourdain público termina com uma oração. Foi bonito.

Anthony Bourdain faz falta, como todos os irreverentes sem papas na língua da história, faz muita falta. Resta-nos ficar com os programas, os livros e as memórias.

ADENDA:
Afinal a totó que eu sou por não fazer o TPC, acabou por achar que tinha visto a última temporada de Parts Unknown, só porque deu depois da morte de Bourdain. Ainda havia a derradeira temporada. Mantenho o que disse acima, afinal foi com esse sentimento que vi essa temporada, esta última foi demasiado curta, demasiado curta... Mas a CNN trabalhou bem, exibiu os episódios como deveria ser até onde pode, sendo um deles já narrado por outra pessoa, e os dois últimos foram uma montagem de testemunhos da equipa que trabalhou com ele, o último com jornalistas que estavam de algum modo ligados a Bourdain e ao programa. Dois deles eram o casal do programa do Irão, que aliás foi memorável.

Termino com as últimas palavras de Anthony Bourdain em Parts Unknown:
"Anthony Bourdain, CNN, eat more SPAM."

Anthony Bourdain (Wikipedia)
No Reservations
Parts Unknown

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