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16 fevereiro 2006

Verdadeiro Japão?

Finalmente consegui ver o Memoirs of a Geisha, parecia que estava fadado que não visse o filme, mas consegui contornar o destino.

Vou desde já dizendo que sou uma das puristas que encarava este filme com o olhar mais céptico possível. Mas também não me posso esquecer que o livro do qual o filme é adaptado não é nada mais que um romance. Um romance empolgante, mas assim mesmo um romance e escrito por um americano, não um japonês. Apesar de não parecer por estas palavras, eu gostei do livro, mas sou mais exigente ainda com o que leio e acho que sei distinguir entre uma obra-prima ou um clássico e uma leitura mais acessível e popular. Para deixar muito claro: o livro, para mim, não é nenhuma maravilha da literatura, mas é muito interessante, envolvente e lê-se de ponta-a-ponta num instantinho, mergulhando-nos lindamente naquele universo intrigante e misterioso.

Sómente ao ver as fotografias do filme e com o que li e pesquisei sobre o tema já havia duas ou três coisas que me punham a desconfiar:
A primeira são os penteados. Não faço a mínima ideia onde os foram buscar, mas em nenhum postal ou fotografia, seja de geisha, seja de outras mulheres, nos anos 20-30 no Japão (e há muitos, documentação não falta), nunca vi penteados semelhantes, de certa forma até tive pena de não ver o clássico penteado que associamos às damas japonesas e às geishas, aquele em forma de meia-lua.
A segunda coisa é o facto de terem escolhido actrizes chinesas e não japonesas. Aqui entra um factor BEM concreto: vestir kimono (e andar nele) não é nada fácil, limita os movimentos e obriga a uma postura específica. Sendo as geisha (juntamente com os actores de kabuki) as grandes especialistas em vestir kimono de forma elegante e sensual, difícilmente alguém de outro país que não o Japão, que não tenha crescido minimamente dentro desse universo cultural, consegue, num curto espaço de tempo, aprender devidamente a mexer-se dentro de um.
A terceira foram as fotos das ruas de Quioto. Quioto tem a chamada "planta urbanística chinesa" que significa que o seu urbanismo se desenvolve em quadrícula a partir de uma avenida, eixo central, que levava ao Palácio Imperial. Por isso mesmo, a grande maioria das suas ruas (principalmente as mais largas) são rectilíneas e muito pouco labirínticas, como nos são mostradas no filme, em que parecem uma chinatown "vestida" de arquitectura japonesa. Gostei do cartaz.

O livro está relativamente bem adaptado, na sua história, ao formato de filme, perdendo muito (é claro) nos detalhes e subtilezas, tão bem descritos por Arthur Golden. Como a compreensão daquele universo por quem faz o filme é bem menor e envolveu, de certo, muito menos pesquisa, a magia e fascínio que transparece no livro, é inexistente no filme. As actrizes são realmente muito boas actrizes e provam-no diversas vezes neste filme, mas não são bem dirigidas nem bem informadas sobre as subtilezas inerentes a terem de representar geisha. Ao tentar fazer deste filme um espectáculo visual e não lendo bem nas entrelinhas deste universo tão subtil, Rob Marshall esticou o filme até mais não, perdendo-se na suposta exuberância, tornando o filme demasiado longo e lá para o fim, mesmo secante. É tudo muito bonitinho, mas pouco envolvente, acho que é daqueles filmes que, se marcar, vai marcar apenas pelo seu exotismo e pouco por ser um bom filme (não o é).

Agora às picuinhices da preciosista que sou eu:
Irritaram-me: as pestanas postiças (demasiado encaracoladas e visíveis) de Zang Ziyi, o erro magistral de porem Hatsumomo, uma manhã, com o kimono traçado ao contrário. Num universo tão supersticioso, como é este das geisha, é um erro mesmo muito grave. O kimono ata-se SEMPRE a parte esquerda sobre a direita, se porventura for atado ao contrário significa que a pessoa ou está morta ou é um fantasma. Como atar um kimono, para quem o veste como especialista e todos os dias há de ser um acto reflexo, é de todo impossível que tal pudesse acontecer na realidade, por mais desleixada que fosse a geisha. Depois ainda há a maquiagem (já não falo mais dos cabelos) que não é a maquiagem normalmente usada pelas Maiko (aprendizes de geisha). Todos os elementos decorativos (maquiagem, penteados, ganchos, pentes, kimonos, obis, etc.) têm um significado e razão de ser, no filme só o desenho na nuca foi respeitado, à frente o eyeliner dos olhos não fazia sentido absolutamente nenhum (nem sequer se usava assim no mundo ocidental, naquela época), faltava o toque de carmesim nos olhos, o rosa nas maçãs do rosto e os lábios pintados parcialmente como numa boneca (basta "googlar" maiko ou geisha nas imagens e ver o resultado). "Last but not least" os kimonos. Os kimonos eram todos lindíssimos e verdadeiros (vinham de colecções privadas) mas quem os vestiu não o sabia fazer como deve ser ou então foi-lhe pedido para o fazer assim. Os ombros de Zang Ziyi eram sempre demasiado proeminentes e virados para a frente, Mameha (Michelle Yeoh), apesar de geisha, é mais velha e portanto não mostraria tanto as costas (aquilo já não é só a nuca, que é o que é suposto mostrar, porque é sensual), que aliás nem geisha nem maiko nenhuma a mostra daquela forma. Na grande maioria das vezes os kimonos foram vestidos de forma muito (demasiado) desleixada e elas, definitivamente, não se sabiam mexer dentro deles, mostrando demasiado os braços (nem os pulsos é suposto mostrar) e por vezes até as pernas. O culminar deste desleixo ocidental é a dança de Sayuri, muito elogiada pela crítica, mas que de dança tradicional japonesa não tem rigorosamente nada, se tiver algo de japonês talvez tenha mais a ver com kabuki, e e... Os especialistas que me desmintam, mas acho que estou a dizer a verdade. Aqueles movimentos largos, rodopiantes, de braços estendidos e a pose final, qual ginasta acrobática, nem sequer têm um ar japonês não fosse ela estar vestida de kimono e ter cara de oriental.
Rob Marshall e a sua equipa "desculparam-se" variadas vezes a dizer que quiseram fazer a "sua" versão daquele livro e daquele universo. Ao menos Arthur Golden passou anos a fazer pesquisa...

Há uma semana e qualquer coisa, deu na RTP1, uma adaptação ao cinema da ópera de Puccini Madama Butterfly, simplesmente fa-bu-lo-sa! Tal como em Memoirs of a Geisha lá tudo era falsificado, as cantoras principais eram todas chinesas, os cenários eram (vejam só!) na Tunísia, o realizador é francês (Frédéric Miterrand), mas com a enorme diferença de que lá tudo parecia mais que verdadeiro. Elas pareciam japonesas de gema, todo o guarda-roupa era muito bem usado e vestido, as casas eram mais que convincentes e, melhor que tudo, numa ópera que resvala fácilmente o melodrama de lagriminha ao canto do olho, o filme era de uma tal sobriedade e excelente interpretação (as cantoras são muito premiadas) que saiu um resultado mesmomesmo muito bom!

http://www.sonypictures.com/movies/memoirsofageisha/
http://www.imdb.com/title/tt0113731/ (Madame Butterfly)

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